Como conhecer um estranho da maneira certa


Noite, sempre noite! Minha vida anda a noite.
Meus sonhos são todos madrugada! Mais cedo ou mais tarde, mas sempre noite.
Correria. Minha mania de fazer tudo dar certo. Depois de um dia cansativo de trabalho. Era noite. O ônibus não veio!
Deu medo. Medo de não ter o que comer, de não ter uma cama para dormir, de tomar a decisão errada, de ficar na rua, de correr mais riscos...
Deu coragem. Afinal, sou independente. Tenho de ter coragem é pré-requisito para uma mulher só e independente. Encontrei todas as respostas. __Ninguém morre se não comer uma noite. Dormir, se dorme em qualquer lugar, basta ter sono. Não ficaria na rua com tantos prédios públicos. O único risco era passar frio.
Mas, as decisões. Ah! Decisões...
Todos que esperavam o ônibus acharam seus caminhos.
Eu ali, fiquei a olhar a rua e pensar. Destino, tu estás novamente a me pregar uma peça. Pare com isso. Logo agora que eu, novamente estava voltando a ser a chata que só trabalha.
Como poderia eu aceitar carona de um estranho?
De um homem que nunca havia visto e que sequer seguia para o mesmo rumo que o meu?
Como aceitar sem medo, a gentileza de alguém que deixaria seu descanso altas horas da noite, para salvar uma estranha, de si mesmo?
Em outras fases da vida a resposta seria não. Mas, depois de muitas conversas com gente que dizia que eu precisava viver, sair, descobrir novos ares e arriscar. Deixei o filme de todas essas vozes passarem na minha cabeça e optei por aceitar.
Foram cinquenta minutos que pareceram horas intermináveis. Medo. Coragem. Medo. Ansiedade. O frio e a fome sequer deram as caras.
Parei de olhar o relógio. Seria o que tivesse de ser, afinal, não sou mais criança.
O céu se abriu, o portão também, surgiu uma gentil cadeira para que eu não esperasse de pé. Surgiu também uma amistosa conversa sobre o trabalho para que a espera não esmagasse meu coração.
Quando vi, chegou. Assim, tranquilamente como se estivesse ali a me buscar pela milésima vez. Fui na sua direção. Um misto de alívio, preocupação e gratidão.
Trocamos boas noites, como pessoas educadas. E outras palavras de praxe.
Tocava Raul, mas bem podia ser Nando Reis...
Após explicar o caminho, apesar de eu estar com a adrenalina a mil, pelo momento inusitado de perigo que estava vivendo, pouco falamos.
Ele parecia cansado, preocupado e só. Era como um pai que busca uma filha em uma festa. Alguns quilômetros a mais, algumas palavras, assuntos de trabalho...
Apesar de não identificar qualquer motivo para defesa, eu estava abraçada a minha mochila, bem colada ao corpo.
Passado algum tempo, percebi que suas palavras eram calmas, num mesmo tom de voz. Segurava o volante com as duas mãos e mantinha uma velocidade constante compatível com a sinalização da via. Poucas vezes olhava para o lado. Apenas algumas vezes, como que para certificar-se de que eu estava mesmo ali.
Surpreendeu-me quando em um momento estendeu-me a mão. Mal me olhou, mas percebi que era um momento de carinho e tomei sua mão entre as minhas, com sincera gratidão pelo que estava a fazer por mim. E assim ficamos por tempo não contabilizado. Porque o tempo parou ali. Eu olhava aquelas mãos e a estrada. A estrada e as mãos.
O longo e cansativo caminho percorrido todos dias, foi vencido rapidamente. Quando percebi, havia chegado ao portão de casa.
Era tarde. Esbocei um abraço de gratidão e um adeus. Não deu muito certo. O abraço foi recebido com receio e o adeus com espanto. Senti-me uma ingrata.
Pensei nas possibilidades de prolongar aquele momento por mais alguns minutos e convidei o estranho para conhecer um lugar na cidade especial para mim. Sem muita esperança de que fosse aceitar, devido o adiantado da hora.
Aceitou. Ele também não queria terminar aquele momento.
Falamos algumas coisas sobre nós. Mostrei o lugar onde fazia minhas preces e sentamos lado a lado num banco de praça.
Ele calado segurando as próprias mãos e eu pensando como quebrar o gelo. Perdida. Logo eu, que sempre fazia o papel inverso.
Não havia mais o que fazer ali. Dei a ideia de irmos embora. Deixou-me no portão de casa. Sã e salva. Agora sem abraço. Apenas com meus sinceros agradecimentos.
Ligou o carro e sumiu na neblina da noite, levando meu coração.

Lunah  Lan

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